Inflação em tempos de guerra

Mal-grado a ideia, bastante generalizada, que a guerra é apenas uma outra via da diplomacia e de a história mostrar a generalidade delas como consequência de divergências religiosas e/ou sociopolíticas, a realidade histórica mostra que de facto a maioria dos conflitos ocorreram por razões económicas. Desde o mais mitológico deles (a guerra de Tróia), apresentado como consequência do rapto da bela Helena terá tido como razão fundamental o interesse estratégico pelo controle do mar Egeu e do comércio que nele circulava, até às chamadas guerras religiosas da Europa (séculos XVI e XVII) que outra coisa não foram que o pretexto para o confronto entre o emergente capitalismo protestante e os resquícios do mui católico apostólico romano feudalismo soçobrante.

Em anterior artigo (Para entender o presente e o futuro do nosso continente) abordei a questão estratégica da ligação entre os mares (Báltico, Adriático, Negro e Cáspio) que ligam a Europa e a Ásia e que constituem hoje o terreno de disputa entre interesses americanos e russos, mostrando, de novo, a estreita interligação entre a “diplomacia” e os “negócios”; hoje tentamos perceber em que medida isso afecta o nosso quotidiano e como os nossos dirigentes tentam (ou não) enfrentar esse problema.

O disparar da inflação, alimentada pelo clássico argumentário da escassez e da quebra dos circuitos de distribuição, é apenas mais uma faceta dos “negócios” que envolvem os conflitos, especialmente numa época em que o visível esgotamento do modo de produção capitalista o está a reduzir a uma economia que depende essencialmente das crises para criar a imagem de crescimento de que necessita para se justificar e perpetuar.

Quando os dois países directamente envolvidos no conflito se contam entre os grandes exportadores cerealíferos, representando cerca de 30% das exportações mundiais de trigo, não é de estranhar que o índice de preços alimentares da FAO dê um “salto gigantesco” e atinja novo recorde de 32 anos, tanto mais que o problema não se resume à redução da oferta ucraniana, pois também as exportações russas são afectadas por dois efeitos: o directamente resultante do conflito e da quebra da sua produção e o do quase completo bloqueio à navegação no mar Negro.

Outro importante sector imediatamente afectado foi o energético (ou não fosse essa a intenção dos promotores do conflito), levando a um rápido aumento dos preços dos combustíveis e ajudando a fomentar uma subida generalizada do custo de vida; uma das regiões obviamente mais atingidas é a Europa, cuja Zona Euro já atingiu uma inflação de 5,9% em Fevereiro (enquanto o Reino Unido atingiu 6,2%, no mesmo mês, o nível mais alto em 30 anos e a Espanha se anuncia perto dos 10%, um máximo desde 1985) e isto quando já se admite que a inflação da zona euro possa exceder 7% em 2022 devido ao impacto da guerra, com Bruxelas a emitir sinais contraditórios com o BCE a anunciar o fim da política de compra de dívida pública depois do Ecofin ter admitido o recurso a medidas extraordinárias, como o prolongamento da suspensão das regras orçamentais, na sua última reunião.

Por cá, as confusões e as contradições não são menores; confirmado que os preços subiram 5,3% em Março, o valor mais alto desde 1994, e quando se antevê que a inflação vai continuar a subir até ao Verão, podendo até chegar aos 6%, o governo anuncia apoios para “proteger famílias da inflação” e aprova medidas para conter aumentos na energia e no agro-alimentar mas mantém os aumentos já previstos para salários e pensões, para não descontrolar a inflação; em resumo, vamos continuar a usar panaceias, do tipo “vouchers” combustíveis ou reduções temporárias de impostos, para enfrentar problemas estruturais.

É verdade que também já se vão discutindo as virtudes e os defeitos da aplicação de taxas sobre os lucros adicionais das empresas do sector energético, algo que o ministro da Economia, António Costa Silva, já admitiu, mas continua sem ver aplicação prática. Ao contrário, em quatro países da União Europeia já cobram taxa sobre lucros adicionais das empresas de energia (Bulgária, Roménia, Itália e Espanha), até porque nem toda a produção resulta do uso de hidrocarbonetos, como é o caso da energia eólica.

Sendo este um bom exemplo do aproveitamento especulativo de uma conjuntura extraordinária, outros existem, com maiores ou menores ligações às subidas de preços da energia e matérias-primas produzidas nos países beligerantes, como o que foi já aqui apresentado por Eugénio Rosa e demonstra como o pretexto da alta dos preços funciona em benefício dos grandes oligopólios e da especulação.

Entre estes oligopólios destacam-se, naturalmente os sectores da energia (electricidade e hidrocarbonetos) e da distribuição e retalho (especialmente a alimentar e de produtos básicos), há muito conhecidos pelo carácter rentista da sua actividade – entendendo-se aqui o rentismo como um rendimento derivado unicamente da propriedade e controlo de um activo, e não da utilização como recurso económico – e que se tem expandido graças ao suporte das políticas neoliberais.

Por isso, a ideia da aplicação de impostos adicionais sobre lucros extraordinários, como os agora gerados pela conjuntura de guerra, os recentemente resultantes da situação pandémica ou os que há décadas beneficiam as práticas oligopolistas e especulativas, há muito que deveria ser a norma de uma sociedade que se intitula de democrática, livre e justa.

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